Ninguém sabe ao certo como receber um rei em casa. No Quilombo de Quingoma, os anciões e os mais jovens escolheram preparar o lugar com música e religiosidade para receber Adeyeye Enitan, rei da cidade de Ifé, na Nigéria. Foi uma visita, no fim da tarde deste domingo (19), que pôs fim a uma espera de pelo menos quatro séculos. Todos se espremiam para vê-lo.
Vestido de branco dos pés a cabeça, o rei de Ifé chegou com mais de sete horas de atraso. A visita estava marcada para a manhã, mas por problemas na viagem a Salvador, foi adiada para a tarde. O rei africano desembarcou em Quingoma para entregar ao povo do lugar o título de território ancestral. A iniciativa é da The African Pride, empresa que trabalha a relação entre o Brasil e países africanos.
Ao descer do carro, uma Land Rover branca, o rei Adeyeye tinha mais uma missão: encurtar os laços entre países africanos e o Brasil, entrecortados pelo terror da escravidão. A majestade, no Brasil, visitará São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal. O projeto tem sido chamado de “Back to Home” (volta para casa).
Na visita a Salvador, estava acompanhado de integrantes da realeza, como duas esposas (a poligamia dos homens é permitida), a prefeita de Lauro de Freitas, Moema Gramacho (PT), e a Secretária De Promoção Da Igualdade, Ângela Guimarães.
Diante da pompa da realeza, acomodado em um sofá bege sob uma lona que o protegia do chuvisco, os moradores de Quingoma reverenciavam o acontecimento. Quem não entrou no campo aberto onde aconteceu o evento, ficou sentado do lado de fora, na calçada, para conseguir ver o rei.
As crianças, espalhadas, brincavam. “Não tô entendendo é nada do que ele tá falando”, disse, com braços cruzados, uma menina de pouco mais de 5 anos. Natural, pois o rei falava em iorubano. “Para mim o único rei existente é o senhor”, emendou outro menino, certamente repetindo o que ouviu de um adulto. Mais cedo, naquela manhã, Rejane Rodrigues, 37, precisou conversar com os mais jovens de Quingoma.
Antes do rei chegar, as crianças, contou a pedagoga, estavam cheias de perguntas e afirmações sobre a visita de um rei. Uma delas, repetida pelos pequenos, desconcertou Rejane, nascida e criada no Quilombo. “Rei não é preto”, diziam.
O futuro de Quingoma aprendeu na prática o que o racismo tenta apagar. “Vir um rei do continente africano, atestar que esse solo é sagrado, ancestral… muda nosso futuro, essas crianças são nosso futuro”.
Visita de rei rememora luta por reconhecimento
O Quilombo de Quingoma, diz a tradição local, existe desde 1569, quando africanos escravizados fugiram de um navio que aportou na Bahia. Por lá vivem 579 famílias. O território preserva, em parte, um clima rural. Vizinho ao local do evento, está o aterro sanitário de Quingoma, ladeado por pedaços de madeira erguidos como casas.
Desde 2004, os moradores de Quingoma lutam pela delimitação do território e convivem com a especulação imobiliária ao redor.
Pouco depois, Donana, microfone à mão, falou a todos que foram receber o rei, de moradores locais a intelectuais. “No nosso território, somos reis e rainhas”. A fala foi aplaudida, seguida de uma roda de samba que acalmava a ansiedade da espera pelo rei oficial. Quando o rei chegou, um clarão se abriu no terreno, supervisionado por policiais militares e guarda municipais.
Houve quem saudasse o rei em iorubá – aqueles que aprenderam o idioma no terreiro. Também havia visitantes da Nigéria. Na noite anterior ao evento, o professor de inglês e iorubá, Damilare Falade, 29, soube da visita do rei a Quingoma, em um grupo de imigrantes da Nigéria em Salvador. Ele mora há nove anos na capital baiana, onde desembarcou para estudar português.
Festa para o rei, esperança para o futuro
Uma fileira de 13 pessoas no berimbau e oito no atabaque festejaram a presença da majestade em Quingoma. A visita ficará marcada no futuro (não só pelas fotos). O rei participou do ato simbólico da plantação de uma muda de árvore sagrada, acompanhado das lideranças locais.
O jardineiro José Carlos Marcolino, 59, estava curioso em ver um rei, assim com títulos e riquezas, mas, de certa forma, está habituado à realeza. Há 30 anos, ele frequenta Quingoma, depois de ter sido iniciado no terreiro liderado por Donana.
A ida de um rei a Quingoma serviu para relembrar o passado do território. Basília Bispo do Santos, 83, falava com reverência do quilombo. “Negro para mim é beleza, quilombo também. Mas o povo do meu tempo não ligava para nada, agora que tão buscando mais as coisas”, contou a pensionista, que nunca esperou ver uma majestade assim tão próxima. Era noite de festa em Quingoma.